sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

[Resenha] S. - O Navio de Teseu

Nome: S. - O Navio de Teseu
Autores: JJ abrams, Doug Dorst
Edição: 1/2015
Editora: Intrínseca
Páginas: 472

Sinopse: Um livro. Dois leitores.

Uma jovem encontra numa biblioteca um livro com anotações de um estranho. As margens repletas de observações revelam um leitor inebriado pela história e pelo misterioso autor da obra. Ela responde os comentários e devolve o livro, que o estranho volta a pegar. Ele é Eric, ela é Jennifer, e o inesperado diálogo dos dois os faz mergulhar no desconhecido. É esse velho exemplar típico de biblioteca - consultado, anotado, manuseado - intitulado O Navio de Teseu, de V. M. Straka, que o leitor encontrará dentro da caixa preta e selada de S.

S. está longe de ser um livro convencional. A obra conecta ao menos quatro histórias, que se desdobram ao mesmo tempo, embora não necessariamente em ordem cronológica. É um livro-jogo, que oferece várias possibilidades de leitura e instiga o leitor a decifrar os mistérios, códigos e pistas contidos em toda a obra. Seja nas notas, nas margens ou nos outros itens da caixa, há sempre algo além do que se vê aguardando para ser descoberto.

Comentários:

Há pouco mais de nove anos conheci a série Lost, e daí nasceu minha admiração pelo trabalho de JJ Abrams. Se ele está envolvido em algo, eu preciso conferir. Desse modo, quando saiu a notícia - se não me engano, em 2011 - de que Abrams estava no projeto de um livro foi como encontrar a porta para Valhala. O projeto era ultra sigiloso, e só em 2013 ficou pronto e disponível em território americano. E agora tinha nome: S. Esse misterioso - em diversos sentidos - livro levou mais dois anos para chegar ao Brasil, de modo que quando o vi na pré-venda encomendei o meu na mesma hora. Nem sei se existem palavras para descrevê-lo.

Para início de conversa, S. não é apenas um livro. É um grande quebra-cabeça literário que vai fazer você perder noites de sono e passar dias se perguntando “quem diabos é V. M. Straka?”. Mas vamos por partes. Dentro da caixa com a enigmática inscrição S. você encontra um exemplar de O Navio de Teseu, escrito por V. M. Straka e traduzido por F. X. Caldeira. O livro publicado em 1949 é um velho exemplar de biblioteca “adotado” por Eric, um apaixonado pelo autor que estuda sua obra e procura sua verdadeira identidade. Uma jovem chamada Jen encontra o livro e ao perceber as anotações do rapaz resolve fazer as suas também. Os dois começam a conversar nas margens do livro com o intuito de resolver esse mistério. Mas nem tudo é o que parece, e essa é uma jornada muito perigosa.


São quatro histórias em uma. A narrativa de O Navio de Teseu, a história de V. M. Straka que F. X. Caldeira vai contando nas notas de rodapé repletas de códigos que Eric e Jen vão desvendando e as próprias tramas de Eric e Jen. Sim, porque apesar dessa conversa na margens ter se iniciado com objetivo de descobrir quanto da história divulgada sobre Straka é verdade e quem ele realmente era, os dois acabam se envolvendo e construindo uma relação. Tudo é relevante e tudo está conectado, além de ser muito perigoso. Pois são tanto segredos acerca de Straka que até estudar sua obra é arriscado.

As tramas se desenvolvem ao mesmo tempo e sem cronologia. As diferentes cores de canetas, por exemplo, representam diferentes tempos de leitura em que as anotações foram feitas. Cabe ao leitor escolher a forma em que julga melhor ler. Para ajudar a resolver os mistérios existe uma gama de materiais extras como cartas, telegramas, recortes de jornal, cartões postais, um mapa feito em guardanapo... Tudo com um propósito e um lugar certo. - Além de páginas na web, embora seja um pouco difícil saber o que é oficial ou não. - Fazendo você ficar cada vez mais imerso em uma trama de conspirações, segredos políticos, revoluções, assassinatos e amor à literatura.


Preciso dizer que apesar de tudo isso (Straka, Caldeira, Eric, Jen...) seja fictício, tudo parece muito real. Para começar, O Navio de Teseu tem todos os requisitos básicos de um livro velho. Da capa desgastada às páginas amareladas. Não duvido que algumas pessoas tenham sofrido crises de rinite psicológicas. Só para ilustrar o que estou dizendo, quando meu pai me viu lendo perguntou algo como “que livro velho é esse? E por que está todo rabiscado?”. Da mesma forma que quando minha mãe o viu pela primeira vez questionou de onde veio o tal “livro velho”. E todos a quem mostro exclamam “mas parece escrito à caneta mesmo... E à lápis!”. Fora todo o material extra que exala veracidade.

Mas toda essa realidade material não valeria nada se o(s) texto(s) não transmitissem a mesma sensação. E fazem isso de forma extraordinária. A narrativa de O Navio de Teseu com todas as suas metáforas e analogias realmente soa como algo escrito durante a década de 1940, fora que sozinho já seria muito bom. As notas de Caldeira são repletas de palavras de um tradutor que admira o autor. E as conversas de Eric e Jen são tão verossímeis que se tem a impressão de estar invadindo algo, de que está se metendo em algo que não é da sua conta. E ao mesmo tempo de que são pessoas tão apaixonadas por seus propósitos que não medem esforços, e que você quer muito entrar nessa jornada com eles. Conhecer seus dilemas pessoais é tão interessante quanto desvendar os mistérios de Straka.

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Não vou dizer que é uma leitura fácil e rápida. A linguagem é acessível e o número de páginas (472) é o que considero mediano. Mas o livro é grande e a maioria das páginas é repleta de informações, e alguns anexos são grandes. Como uma carta de três folhas escritas frente e verso. E não é bem o tipo de livro que dá para ler na rua, o melhor é abri-lo sobre uma mesa e dedicar um momento do dia para estudá-lo. Fora que assim você tem uma garantia melhor de que nenhum anexo será extraviado. Em outras palavras, numa era em que tudo é digital, veloz e impalpável, S. te faz desacelerar e lembrar a graça de ter algo palpável. E de se focar totalmente em apenas uma coisa. Então pode ser um processo lento mas é extremamente gratificante e renovador.

Apesar da complexidade o conteúdo é fácil de ser assimilado. Posso afirmar isso pois fiquei doente no meio da leitura e com isso fui obrigada a interrompê-la por uns dias, e ao retomar tive receio de precisar começar do zero outra vez. Mas não foi necessário, tudo voltou em minha mente quando continuei do ponto onde parei. Brinco que os anos assistindo Lost ajudaram a aguçar minha memória, mas acredito que participar de um grupo de leitura também ajudou muito. O que também foi um tanto nostálgico, já que há tempos não participava de um grupo de discussão sobre algo.



O processo de criação de S. também é bastante interessante. JJ Abrams foi o idealizador do projeto, diz a lenda que ele teria encontrado um exemplar de A Identidade Bourne com anotações nas margens enquanto esperava por um voo. Nasceu daí a ideia de duas pessoas conversando através de anotações em um livro. Mas foi o romancista Doug Dorst, que apesar de premiado não teve nenhuma outra obra publicada no Brasil ainda, quem o escreveu. O que faz de S. um trabalho realizado a quatro mãos. Ele foi desenvolvido dentro da Bad Robot (produtora de Abrams), e Dorst fez todas as anotações e muitos dos anexos a mão para que depois fossem digitalizados. Não é a toa que parece tão real.

Impossível deixar de mencionar o carinho que a editora Intrínseca teve com a versão brasileira. Uma equipe de quinze pessoas ficou responsável pela adaptação da obra. Por questão de custo o trabalho gráfico não foi realizado aqui no Brasil, mas na China como o original. Mas não sem antes se certificar de que seria mesmo inviável produzi-lo em nosso país. E diferente da editora responsável pela publicação na França que usou fontes digitais para as partes manuscritas, aqui foi usada a mesma técnica do original. Sendo que ao que tudo indica apenas no Brasil esse trabalho foi realizado por uma única pessoa, o designer caligrafista Antonio Rhoden que foi contratado para refazer tudo em português com a mesma caligrafia do original para depois ser digitalizado. Ele praticamente refez todo o trabalho de Dorst. Só imagino a responsabilidade e a honra de realizar algo assim. Todavia, a tradução por si só já não foi algo simples. Com tantos códigos é preciso tomar muito cuidado para que não se percam ou tenham seu sentido alterado na passagem do texto para o português. Não é de se estranhar que todo o processo de adaptação tenha levado dois anos.

Por fim, você termina S. mas S. não termina com você. Já desconfiava que precisaria de mais de uma leitura, e ao encerrar - se é que dá para dizer isso - essa primeira experiência tudo o que queria era começar de novo. E creio que a cada nova leitura terei também uma nova percepção. Por isso também preferi focar essa resenha na experiência e no conjunto da obra do que no enredo, além de que também tive receio de revelar mais do que deveria. E por ser um livro diferente, uma resenha diferente com imagens dessa bela obra-prima. Acima de tudo, uma declaração de amor ao mundo da literatura e um tributo a quem o ama.



Imagens por Marina Ribeiro Kodama

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