Nome:
S. - O Navio de Teseu
Autores:
JJ abrams, Doug Dorst
Edição:
1/2015
Editora:
Intrínseca
Páginas:
472
Sinopse: Um
livro. Dois leitores.
Uma
jovem encontra numa biblioteca um livro com anotações de um
estranho. As margens repletas de observações revelam um leitor
inebriado pela história e pelo misterioso autor da obra. Ela
responde os comentários e devolve o livro, que o estranho volta a
pegar. Ele é Eric, ela é Jennifer, e o inesperado diálogo dos dois
os faz mergulhar no desconhecido. É esse velho exemplar típico de
biblioteca - consultado, anotado, manuseado - intitulado O Navio de
Teseu, de V. M. Straka, que o leitor encontrará dentro da caixa
preta e selada de S.
S.
está longe de ser um livro convencional. A obra conecta ao menos
quatro histórias, que se desdobram ao mesmo tempo, embora não
necessariamente em ordem cronológica. É um livro-jogo, que oferece
várias possibilidades de leitura e instiga o leitor a decifrar os
mistérios, códigos e pistas contidos em toda a obra. Seja nas
notas, nas margens ou nos outros itens da caixa, há sempre algo além
do que se vê aguardando para ser descoberto.
Comentários:
Há
pouco mais de nove anos conheci a série Lost, e daí nasceu
minha admiração pelo trabalho de JJ Abrams. Se ele está envolvido
em algo, eu preciso conferir. Desse modo, quando saiu a notícia - se
não me engano, em 2011 - de que Abrams estava no projeto de um livro
foi como encontrar a porta para Valhala. O projeto era ultra
sigiloso, e só em 2013 ficou pronto e disponível em território
americano. E agora tinha nome: S. Esse misterioso - em
diversos sentidos - livro levou mais dois anos para chegar ao Brasil,
de modo que quando o vi na pré-venda encomendei o meu na mesma hora.
Nem sei se existem palavras para descrevê-lo.
Para
início de conversa, S. não é apenas um livro. É um grande
quebra-cabeça literário que vai fazer você perder noites de sono e
passar dias se perguntando “quem diabos é V. M. Straka?”.
Mas vamos por partes. Dentro da caixa com a enigmática inscrição
S. você encontra um exemplar de O Navio de Teseu,
escrito por V. M. Straka e traduzido por F. X. Caldeira. O livro
publicado em 1949 é um velho exemplar de biblioteca “adotado”
por Eric, um apaixonado pelo autor que estuda sua obra e procura sua
verdadeira identidade. Uma jovem chamada Jen encontra o livro e ao
perceber as anotações do rapaz resolve fazer as suas também. Os
dois começam a conversar nas margens do livro com o intuito de
resolver esse mistério. Mas nem tudo é o que parece, e essa é uma
jornada muito perigosa.
São
quatro histórias em uma. A narrativa de O Navio de Teseu, a
história de V. M. Straka que F. X. Caldeira vai contando nas notas
de rodapé repletas de códigos que Eric e Jen vão desvendando e as
próprias tramas de Eric e Jen. Sim, porque apesar dessa conversa na
margens ter se iniciado com objetivo de descobrir quanto da história
divulgada sobre Straka é verdade e quem ele realmente era, os dois
acabam se envolvendo e construindo uma relação. Tudo é relevante e
tudo está conectado, além de ser muito perigoso. Pois são tanto
segredos acerca de Straka que até estudar sua obra é arriscado.
As
tramas se desenvolvem ao mesmo tempo e sem cronologia. As diferentes
cores de canetas, por exemplo, representam diferentes tempos de
leitura em que as anotações foram feitas. Cabe ao leitor escolher a
forma em que julga melhor ler. Para ajudar a resolver os mistérios
existe uma gama de materiais extras como cartas, telegramas, recortes
de jornal, cartões postais, um mapa feito em guardanapo... Tudo com
um propósito e um lugar certo. - Além de páginas na web, embora
seja um pouco difícil saber o que é oficial ou não. - Fazendo você
ficar cada vez mais imerso em uma trama de conspirações, segredos
políticos, revoluções, assassinatos e amor à literatura.
Preciso
dizer que apesar de tudo isso (Straka, Caldeira, Eric, Jen...) seja
fictício, tudo parece muito real. Para começar, O Navio de Teseu
tem todos os requisitos básicos de um livro velho. Da capa
desgastada às páginas amareladas. Não duvido que algumas pessoas
tenham sofrido crises de rinite psicológicas. Só para ilustrar o
que estou dizendo, quando meu pai me viu lendo perguntou algo como
“que livro velho é esse? E por que está todo rabiscado?”.
Da mesma forma que quando minha mãe o viu pela primeira vez
questionou de onde veio o tal “livro velho”. E todos a
quem mostro exclamam “mas parece escrito à caneta mesmo... E à
lápis!”. Fora todo o material extra que exala veracidade.
Mas
toda essa realidade material não valeria nada se o(s) texto(s) não
transmitissem a mesma sensação. E fazem isso de forma
extraordinária. A narrativa de O Navio de Teseu com todas as
suas metáforas e analogias realmente soa como algo escrito durante a
década de 1940, fora que sozinho já seria muito bom. As notas de
Caldeira são repletas de palavras de um tradutor que admira o autor.
E as conversas de Eric e Jen são tão verossímeis que se tem a
impressão de estar invadindo algo, de que está se metendo em algo
que não é da sua conta. E ao mesmo tempo de que são pessoas tão
apaixonadas por seus propósitos que não medem esforços, e que você
quer muito entrar nessa jornada com eles. Conhecer seus dilemas
pessoais é tão interessante quanto desvendar os mistérios de
Straka.
Não vou dizer que é uma leitura fácil e rápida. A linguagem é acessível e o número de páginas (472) é o que considero mediano. Mas o livro é grande e a maioria das páginas é repleta de informações, e alguns anexos são grandes. Como uma carta de três folhas escritas frente e verso. E não é bem o tipo de livro que dá para ler na rua, o melhor é abri-lo sobre uma mesa e dedicar um momento do dia para estudá-lo. Fora que assim você tem uma garantia melhor de que nenhum anexo será extraviado. Em outras palavras, numa era em que tudo é digital, veloz e impalpável, S. te faz desacelerar e lembrar a graça de ter algo palpável. E de se focar totalmente em apenas uma coisa. Então pode ser um processo lento mas é extremamente gratificante e renovador.
Apesar
da complexidade o conteúdo é fácil de ser assimilado. Posso
afirmar isso pois fiquei doente no meio da leitura e com isso fui
obrigada a interrompê-la por uns dias, e ao retomar tive receio de
precisar começar do zero outra vez. Mas não foi necessário, tudo
voltou em minha mente quando continuei do ponto onde parei. Brinco
que os anos assistindo Lost ajudaram a aguçar minha memória,
mas acredito que participar de um grupo de leitura também ajudou
muito. O que também foi um tanto nostálgico, já que há tempos não
participava de um grupo de discussão sobre algo.
O
processo de criação de S. também é bastante interessante.
JJ Abrams foi o idealizador do projeto, diz a lenda que ele teria
encontrado um exemplar de A Identidade Bourne com anotações
nas margens enquanto esperava por um voo. Nasceu daí a ideia de duas
pessoas conversando através de anotações em um livro. Mas foi o
romancista Doug Dorst, que apesar de premiado não teve nenhuma outra
obra publicada no Brasil ainda, quem o escreveu. O que faz de S.
um trabalho realizado a quatro mãos. Ele foi desenvolvido dentro da
Bad Robot (produtora de Abrams), e Dorst fez todas as
anotações e muitos dos anexos a mão para que depois fossem
digitalizados. Não é a toa que parece tão real.
Impossível
deixar de mencionar o carinho que a editora Intrínseca teve
com a versão brasileira. Uma equipe de quinze pessoas ficou
responsável pela adaptação da obra. Por questão de custo o trabalho gráfico não foi realizado aqui no Brasil, mas na China como o original. Mas não sem antes se certificar de que seria mesmo inviável produzi-lo em nosso país. E diferente da editora responsável pela publicação na França que usou fontes digitais para as partes manuscritas, aqui foi usada a mesma técnica do original. Sendo que ao que tudo indica apenas no Brasil esse trabalho foi realizado por uma única pessoa, o designer caligrafista
Antonio Rhoden que foi contratado para refazer tudo em português com a
mesma caligrafia do original para depois ser digitalizado. Ele
praticamente refez todo o trabalho de Dorst. Só imagino a
responsabilidade e a honra de realizar algo assim. Todavia, a
tradução por si só já não foi algo simples. Com tantos códigos
é preciso tomar muito cuidado para que não se percam ou tenham seu
sentido alterado na passagem do texto para o português. Não é de
se estranhar que todo o processo de adaptação tenha levado dois
anos.
Por
fim, você termina S. mas S. não termina com você. Já
desconfiava que precisaria de mais de uma leitura, e ao encerrar - se
é que dá para dizer isso - essa primeira experiência tudo o que
queria era começar de novo. E creio que a cada nova leitura terei
também uma nova percepção. Por isso também preferi focar essa
resenha na experiência e no conjunto da obra do que no enredo, além
de que também tive receio de revelar mais do que deveria. E por ser
um livro diferente, uma resenha diferente com imagens dessa bela
obra-prima. Acima de tudo, uma declaração de amor ao mundo da
literatura e um tributo a quem o ama.
Imagens por Marina Ribeiro Kodama